ENTREVISTA / tenente-coronel Carlos Magno - 'A imprensa definiu milícias como grupos que dominam áreas pobres' - http://comunidadesegura.com.br.
Carlos Magno Ribeiro Cabral é tenente-coronel da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, ocupa o cargo de assessor chefe da Assessoria de Planejamento, Orçamento e Modernização da PMERJ. É Pós-graduado em Gestão de Segurança Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), com a monografia “O Fenômeno das Milícias na cidade do Rio de Janeiro”, apresentada em 2007. Em entrevista ao boletim Busca Avançada, Carlos Magno explica a origem do termo milícia.
Como o termo milícia aparece no vocabulário carioca?
Bem, o termo milícia é uma tradição militar portuguesa de tratar as tropas de segunda linha, isso lá no tempo do Império. O Exército regular era considerado a tropa de primeira linha. Tudo aquilo que fosse reserva auxiliar do Exército era milícia. Historicamente, milícia é o termo utilizado para designar a Polícia Militar já que a corporação durante muito tempo foi reserva do Exército.
Hoje, genericamente, ele é definido para identificar grupos paramilitares, que podem ser compostos por civis mantidos pelo Estado ou organizados em caráter privado. Mas ela apareceu no cenário carioca pela agenda pública que a mídia colocou nas primeiras páginas dos jornais.
No entanto não há uma tipificação, não há nada que diga o que é milícia. Porque a segurança privada em uma rua do bairro Peixoto em Copacabana é segurança privada e uma segurança privada em uma rua, vamos dizer em Inhaúma, é chamada de milícia? Por que a imprensa define como milícia. A imprensa definiu como sendo milícias aqueles grupos que dominam as áreas mais pobres. Na zona sul é segurança privada, na zona norte, oeste, Baixada Fluminense é milícia.
A diferença pode ser explicada porque em uma área mais pobre esse grupo também define a ordem social daquele local?
Não podemos esquecer que esse aspecto da ordem social também tem um peso importante. Mas aí já em relação ao modo operante, a forma de trabalhar, e não ao tratamento do vocábulo. O tratamento do vocábulo é que a gente entende como sendo errado. Todas as pesquisas que a gente fez, nós entendemos que o tratamento do vocábulo foi equivocado. Poderiam ser tratados como quadrilha, quadrilheiros, guerrilheiros urbanos.
Historicamente, como as milícias se constituem e se expandem pelo Rio de Janeiro? Quais são as diferenças e semelhanças entre os diferentes grupos de milícias?
No Rio de Janeiro esses grupos eram chamados inicialmente de “mineiras”. A polícia mineira nasceu na comunidade de Rio das Pedras que, em 1960, era basicamente formada por migrantes nordestinos que vinham para o Rio de Janeiro para trabalhar na construção civil.
No final dos anos 70, início de 80 começou o tráfico de drogas a crescer no Rio de Janeiro. A comunidade do Rio das Pedras se juntou, liderada por um nordestino, e formou um grupo que impedia que os filhos dos trabalhadores se envolvessem com a criminalidade. E as ações eram corretivas, de punição familiar. Aqueles que realmente entravam para a marginalidade começaram a ser executados. Mas nada que chamasse a atenção do poder público.
O pagamento dessa polícia mineira era insignificante ou não existia. Era simplesmente para garantir a segurança de um comerciante ou outro. E aquela comunidade começou a ter uma vida própria, impedindo que o tráfico lá se instalasse. Não havia nenhum registro de qualquer policial que tivesse participado da formação dessa mineira de Rio das Pedras. Ela era basicamente formada por membros da comunidade, integrantes da própria comunidade que tinham seus empregos e simplesmente desenvolviam uma atividade de garantir a ordem, liderando associação de moradores e tal.
O tráfico já estava em expansão em outros lugares, como a Rocinha, a Mangueira, a Providência, e lá não tinha problema. A taxa de homicídios era baixa, o tráfico não existia, roubos zero. O poder público não se incomodava nem com as ações criminosas nem com melhoria da qualidade de vida daquelas pessoas. Que continuavam favelados. Naquele momento poderíamos ter criado ali um bairro de excelência, uma ilha de segurança, que poderia servir de modelo para toda a cidade.
E como essas práticas evoluíram para as de hoje?
Com o crescimento da comunidade começaram as cobranças, inicialmente dos comerciantes. Na saída do presidente Fernando Collor, tivemos um programa de demissão voluntária que colocou no mercado um grupo com poder aquisitivo relativamente bom. Muita gente entrou para o mercado do transporte alternativo, que não tinha a menor regulamentação. Nas comunidades onde o tráfico mandava, eles prestavam contas para os traficantes e nos espaços públicos prestavam contas a policiais e a agentes da prefeitura, agentes de trânsito, dando conta aí de diversos casos de corrupção inclusive.
Em Rio das Pedras, eles prestavam contas a esse grupo da polícia mineira que acabou percebendo que era muito rentável. Começaram a ser donos, a cobrar, a administrar a cooperativa. Foi o primeiro toque empresarial daquele grupo. Depois vieram os camelôs, o comércio informal, a distribuição de gás, a distribuição de água.
E como se dá a entrada de integrantes das forças de segurança nesses grupos?
Em 2005, um grupo de policiais decidiu expulsar os traficantes da favela Kelson’s, porque haviam assassinado um policial militar. Este grupo entrou assumindo outros negócios como transporte alternativo, água, gás, “gatonet”, e implantaram uma nova ordem social com a participação de policiais civis e militares, bombeiros, agentes penitenciários. Hoje, todos os agentes da segurança pública estão envolvidos com este fenômeno.
Como se pode entender a distribuição espacial irregular das milícias no Rio de Janeiro?
O que a gente percebe naturalmente é que esta distribuição se dá por conta de onde moram os policiais, bombeiros, militares de baixa graduação. A maioria dos formadores desses grupos mora na zona Oeste, na Baixada, na zona Norte, e não na zona Sul. Não há como eles montarem uma estrutura permanente em uma comunidade dominada pelo tráfico sem ser morador das proximidades. Porque no caso de uma ação dos próprios marginais eles iriam precisar mobilizar um grupo muito grande para impedir a reação ou para rechaçar a ação desses meliantes. Por isso a gente entende que a proliferação na zona Oeste, na Baixada é dada pela distribuição do pessoal propriamente.
E o que faz com que os grupos envolvidos no tráfico de drogas em favelas se desterritorializem frente à ação das milícias e não frente à ação do Estado?
O Estado entra nessas comunidades, desmobiliza e sai da comunidade. O Estado deveria entrar com a polícia, permanecer e dar outras oportunidades, abrir ruas, construir novas escolas e atuar diretamente na cultura daquela comunidade. A cultura da comunidade é importante, a cultura de que o poder público está ali para servi-lo e não simplesmente para reprimi-lo. É importante que a cultura seja modificada, tanto dos agentes públicos, quanto daquelas comunidades porque eles são desmobilizados, mas os milicianos permanecem naquelas comunidades, permanecem garantindo, ocupando seu território.
A milícia pode ser caracterizada como organização paramilitar?Qual é a relação que ela mantém com o Estado?
Não temos comprovação de que ela tenha uma estrutura paramilitar, ela pode se aproximar de uma estrutura paramilitar em algumas ações e em outras ela se aproxima diretamente do crime.
Quanto à relação que ela mantém com o Estado, eu costumo falar sempre uma parábola do gatinho e do leão. “O Estado foi na feira e comprou um gatinho. Quando se deu conta, aquele gatinho felpudo tinha crescido e virado um leão e hoje ele quer se alimentar do seu próprio dono, porque a fome dele é muito grande.”
O Estado não estava preparado para a ação das milícias, não esperava que o monstro, o leão fosse crescer tanto. Hoje existe uma relação perniciosa da milícia com o Estado, porque ela desafia o poder público em alguns momentos e usando a máquina estatal para se manter. Estudos mostram que todos os outros grupos que tinham atuações parecidas com as das milícias, se infiltraram dentro do poder público em proporções incalculáveis. Nós temos aí exemplos na Colômbia, da máfia italiana. Então a gente tem um histórico aí de grupos semelhantes que o Estado tem que combater, tem que investigar, se forem policiais tem que expulsá-los, prendê-los. O uso da força tem que ser exclusividade do Estado.
Se o Estado moderno tem o monopólio do uso legitimo da força física, como as milícias podem ter a expressão que têm hoje no Rio de Janeiro?
Eu acredito realmente que foi por conta desse despreparo do Estado para esses grupos. Nosso prefeito (na época da entrevista, o prefeito do Rio era César Maia) inclusive denominou esses grupos como autodefesas comunitárias. Ele também naquele momento não tinha idéia do tamanho do leão. Houve um determinado momento em que se falava do mal menor, mas não se tinha ainda enxergado que era um mal muito maior.
Você começava a perder a referência de quem era o criminoso. O criminoso passa a ser aquele que nos momentos em que ele deveria estar no lazer, cuidando da família, está exercendo o poder da força em benefício próprio, financeiro. E no momento em que ele tem que servir a sociedade, ele usa a máquina pública também com o mesmo objetivo, para fortalecer os seus domínios.
Segurança pública é uma atividade muito rentável. Então quando você faz da segurança pública, a segurança privada, a possibilidade de enriquecer passa a ser grande. Porque você vai usar a máquina estatal, que tem o monopólio da força, em benefício próprio, em benefício do particular. Então é uma perda total da referência de quem tem o poder.
Milícia e tráfico são compreendidos como grupos excludentes. Como o senhor vê essa questão?
Por que os dois hoje se apresentam dessa forma, onde há um não há o outro? A proposta de convencimento das milícias, da sua aceitação social, é de que vão expulsar o tráfico de drogas e que a violência vai acabar. Só que esses agentes do Estado que compõem as milícias estão pensando no lucro. Eles não estão lá como agentes do Estado que querem simplesmente devolver o espaço público para o povo. Eles estão ali pensando no retorno financeiro. Eles expulsam os traficantes, que vão traficar drogas em outro local, cometer outros crimes.
Mas como esses grupos vão manter a liquidez dos seus negócios? Provavelmente se envolver no tráfico de drogas. Então eu vejo como hoje esse afastamento vai se encontrar em algum ponto da história. Em algum ponto da história eles vão se encontrar e vão caminhar juntos, até porque a história diz isso. As milícias afegãs plantam papoula para a produção do ópio e fazem o tráfico de ópio. As guerrilhas colombianas hoje dominam o tráfico de drogas na Colômbia. As máfias italianas e americanas dominam o tráfico de drogas, a máfia chinesa domina o tráfico de drogas e o contrabando na China. É uma tendência histórica.
É um cenário assustador... Existe alguma relação entre os traficantes e os grupos de milicianos?
A gente ainda não tem, pelo menos até onde a gente conseguiu estudar, informação segura que nos garanta afirmar isso. Temos informações um pouco desencontradas de que algumas pessoas que eram ligadas ao tráfico migraram para a milícia.
Um aspecto importante que a gente não pode deixar de comentar sobre a milícia, é o aspecto político. A gente percebeu durante o nosso estudo que o poder Legislativo teve uma mudança no seu corpo muito significativa. Os candidatos que foram eleitos de 2005 para cá tiveram votações expressivas em determinados pontos dominados por esses grupos. Isso é um aspecto importante, é uma coisa que se tem que pensar estrategicamente.
Já houve no passado um movimento de emancipação da Zona Oeste que incluía Jacarepaguá, Barra da Tijuca, Padre Miguel, Recreio, Realengo até Santa Cruz. Estrategicamente, se emancipar a Zona Oeste, estando ela dominada totalmente por milícias, naturalmente o prefeito poderia emergir de uma dessas milícias, teria autorização legal para constituir uma Guarda Municipal armada e legalizar a milícia.
Não há interesse no poder Executivo estadual e nos poderes executivos municipais de constituir guardas municipais armadas, mas há previsão legal. Mas será que com uma Zona Oeste emancipada, esse interesse não seria bem-vindo? São coisas para a gente pensar no futuro e estudar. É importante você levar para a agenda pública uma discussão para tipificar a milícia. Hoje, montar uma milícia não é tipificado.
E o que pode ser feito?
É importante que se abra um fórum de discussão no meio acadêmico sobre essa atividade que tem um impacto social muito forte, que pode ser muito mais pernicioso do que a própria ação de traficantes. Porque a ação de traficantes é identificada: ele está de um lado e o poder público está de outro. Agora, quando você trata com policiais, você precisa trabalhar internamente as instituições para que eles entendam, para que a instituição entenda que quem está lá do outro lado também está contra a ordem legal.
Quando a gente discute a participação de policiais militares na segurança privada, um fator que é importante para esse setor crescer é o fato de a pessoa que está na segurança privada informal ter um vínculo com o Estado. Na milícia também é essa mesma lógica?
Não. Na milícia a lógica é da coragem. Da disposição para o trabalho. Ganha mais quem tem mais coragem, não importa se é bombeiro, agente penitenciário, guarda municipal, cabo do Exército, PM em atividade ou inativo. Depende da disposição, da coragem que ele tem para enfrentar aquela atividade de milícia. Que é, basicamente, encarar os traficantes, expulsá-los e manter o território. E correr o risco de ser preso pela polícia desenvolvendo uma atividade de milícia, já que o combate começou a acontecer.
A milícia hoje é estruturada com o Legislativo e com a política, não?
Não, ela não tem estrutura com a política. A gente não pode dizer que o político seja o líder da milícia. A gente não tem como afirmar isso. Agora, o que a gente provou e mostrou é que os lugares dominados por milícias tiveram candidatos específicos com votação expressiva. A ligação não é tão estreita assim, pelo menos a gente não vê. Aí a gente vai precisar que o Dr. Cláudio Ferraz aprofunde a pesquisa, a investigação, o deputado Marcelo Freixo que está responsável pela CPI das Milícias, consigam chegar a alguma coisa *.
* O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Milícias, aprovado por unanimidade na Alerj em dezembro de 2008, denunciou 225 pessoas por envolvimento com milícias, entre eles, vereadores de áreas dominadas por grupos de milícias.