segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

DELATOR É EXECUTADO COM VÁRIOS TIROS


GAUCHAZH 24/02/2020

Delator que abalou as estruturas de facção gaúcha é assassinado com tiros na cabeça em Santa Catarina. Douglas Gonçalves Romano dos Santos, 23 anos, foi executado na noite de domingo, em Balneário Camboriú

LETICIA MENDES



O autor da delação que abalou uma das maiores facções criminosas do Rio Grande do Sul foi executado a tiros na noite de domingo (23) em Santa Catarina. Douglas Gonçalves Romano dos Santos, 23 anos, foi morto a tiros em Balneário Camboriú, onde estaria residindo. Ele chegou a integrar programa de proteção a testemunhas, do qual se desligou em janeiro deste ano.


Segundo a Polícia Militar da cidade do litoral catarinense, Douglas estava em uma corrida de aplicativo e desembarcou na Rua Justiniano Neves, no bairro Pioneiros. O motorista relatou à polícia que deixou o passageiro no local e que logo depois ouviu os disparos.



Quatro homens estariam no veículo de onde partiram os disparos. O homem foi atingido por diversos tiros de pistola calibre 9 milímetros. No local foram recolhidos 17 cartuchos de munição deflagrada. Pelo menos quatro a cinco disparos teriam acertado a cabeça da vítima.


No dia 2 de fevereiro, Douglas já havia sido baleado durante festa também em Camboriú. Ele chegou a ficar hospitalizado e estava, atualmente, com uma das pernas engessada.

A delação


Em 2017, Douglas procurou a Polícia Civil e delatou a facção Bala na Cara, da qual foi integrante em Porto Alegre. Ex-gerente do tráfico no bairro Mario Quintana, relatou aos policiais e ao Ministério Público uma sequência de crimes cometidos a mando do grupo criminoso, com berço no bairro Bom Jesus, na zona leste da Capital.


Na delação, Douglas revelou detalhes sobre o funcionamento da facção e sobre sequestros e esquartejamentos. A confissão gerou, nos últimos dois anos, pelo menos 60 processos por homicídios envolvendo a facção.



"Medo, medo de morrer, não. Na real, eu já tô fazendo hora extra na Terra. Fico espiado. Mas medo, medo de morrer, não tenho, não. Já tive bastante no comecinho. Não sei se já me conformei. Uma hora vão me pegar, isso é certo." DOUGLAS GONÇALVES ROMANO DOS SANTOS. Delator de facção em entrevista a GaúchaZH em março de 2019



Em acordo de colaboração premiada com a Justiça, Douglas foi inserido no programa de proteção a testemunhas e deixou para trás não apenas o bairro ou a Capital. Passou a morar fora do Rio Grande do Sul, sob proteção federal, aguardando o julgamento dos processos no qual era réu. Jurado de morte, mudava-se com frequência de cidade e Estado.


Em março de 2019, a história da delação foi contada em reportagem de GaúchaZH. Em entrevista, ele chegou a afirmar que sabia que seria morto em algum momento, como forma de represália pela delação.


— Uma hora vão me pegar, isso é certo — afirmou.


A reportagem teve acesso a 24 processos, sendo que em 18 o delator é réu e em seis a colaboração serviu de embasamento para apurar o caso. Há detalhes de crimes bárbaros, como um esquartejamento em 2016, enquanto a pessoa estava viva. Em decisão judicial do primeiro trimestre de 2018, o homem é citado como antigo gerente do tráfico, sob comando de José Dalvani Nunes Rodrigues, o Minhoca — que se tornou réu e continua sendo investigado, suspeito de ter ordenado outros homicídios.


Com ajuda da delação, pelo menos três líderes da facção foram isolados. Em março de 2017, Minhoca foi transferido para a penitenciária federal de Campo Grande (MS). Em julho do mesmo ano, outros 27 chefes do crime organizado foram encaminhados para unidades de segurança máxima fora do Estado, entre eles Fábio Fogassa, o Alemão Lico, e Marcio Oliveira Chultz, o Alemão Márcio.


Em janeiro deste ano, Douglas pediu desligamento do programa de proteção.



A DELAÇÃO QUE ABALOU O PODER DOS BALA NA CARA

GAÚCHAZH 15-03-2019

A delação que abalou o poder de uma facção criminosa de Porto Alegre

Jurado de morte e decidido a entregar crimes que havia praticado ou presenciado, ex-gerente do tráfico de drogas firmou com a Justiça o maior acordo de delação da história do crime organizado gaúcho e deu detalhes da rotina da quadrilha envolvida com esquartejamentos e execuções.


Em uma noite de 2017, dois assassinatos em sequência durante uma "social" — como são chamadas as festas ao ar livre realizadas nas comunidades — acenderam o alerta no então gerente do tráfico de drogas do bairro Mario Quintana, em Porto Alegre. Integrante da facção Bala na Cara, ele estava convicto da inocência de um comparsa e amigo que deveria ser morto como responsável pelo sumiço de uma arma. Também não aceitava a execução de uma jovem, sua protegida, que deveria ocorrer na mesma noite. A garota foi condenada por ter curtido um post dos rivais no crime.

"Vamo arrastar ele agora." O aviso dado nas ruas do Mario Quintana foi a senha para o primeiro assassinato. Minutos depois, o amigo do gerente do tráfico foi alvejado na cabeça e jogado dentro de um porta-malas. A ordem teria partido de dentro da Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc). Coube ao gerente dar o último disparo no amigo, que agonizava dentro do veículo.


Horas depois, a garota foi morta com três tiros no rosto. Teve o corpo jogado dentro do mesmo carro onde estava a vítima anterior.


As duas mortes abalaram o sujeito, mesmo que ele fosse acostumado a conviver e a praticar a barbárie. Contrariado com as execuções, achou que era melhor abandonar o crime, antes de merecer um fim igual. Uma semana depois, avisou que sairia da facção. Pretendia mudar de bairro. O pedido foi aceito. Mas, na sequência, tomou conhecimento da ordem que já esperava: deveria ser assassinado. Sabia demais.


Decidiu que, antes de morrer, entregaria os crimes que havia presenciado ou praticado, além de todo o esquema de funcionamento da facção. Em uma madrugada, entrou em uma delegacia de Porto Alegre e perguntou a um policial:


— O que tu quer saber sobre Os Bala?


Consequências


O gerente virou, então, delator. Fez acordo de colaboração premiada com a Justiça, foi inserido em um programa de proteção a testemunhas e deixou para trás não apenas o bairro ou a Capital: mora fora do Rio Grande do Sul, sob proteção federal, aguardando o julgamento dos processos em que é réu. Por continuar jurado de morte pelo grupo criminoso, muda-se com frequência de Estado, usa colete à prova de balas e, aos 23 anos, acredita que já fez "hora extra na Terra". Sem dizer o local onde se encontrava e sem fornecer informações judiciais, em respeito às cláusulas do acordo de colaboração, ele contou sua história à reportagem.


Foi a maior delação da história do crime organizado no Estado. A partir das confissões, a polícia montou operações contra os traficantes, como esta, em maio de 2017.

À polícia, ele revelou detalhes sobre o funcionamento da facção e sobre sequestros e esquartejamentos. A confissão gerou, nos últimos dois anos, pelo menos 60 processos por homicídios envolvendo a facção. Um membro do Judiciário afirma:


— Foi a grande fonte de informação para atacar a facção. Ele estava jurado de morte e resolveu falar. O medo faz com que a maioria se cale.


A reportagem teve acesso a 24 processos, sendo que em 18 o delator é réu e em seis a colaboração serviu de embasamento para apurar o caso. Há detalhes de crimes bárbaros, como um esquartejamento em 2016, enquanto a pessoa estava viva. Em decisão judicial do primeiro trimestre de 2018, o homem é citado como antigo gerente do tráfico, sob comando de José Dalvani Nunes Rodrigues, o Minhoca — que se tornou réu e continua sendo investigado, suspeito de ter ordenado outros homicídios.


"Ele estava jurado de morte e resolveu falar. O medo faz com que a maioria se cale." INTEGRANTE DO JUDICIÁRIO


Com ajuda da delação, pelo menos três líderes da facção foram isolados. Em março de 2017, Minhoca foi transferido para a penitenciária federal de Campo Grande (MS).


Em julho do mesmo ano, outros 27 chefes do crime organizado foram encaminhados para unidades de segurança máxima fora do Estado, entre eles Fábio Fogassa, o Alemão Lico, e Marcio Oliveira Chultz, o Alemão Márcio.


Revelações


Quando um criminoso resolve delatar, é natural que haja desconfiança — os relatos precisam ser confrontados com fatos. Para comprovar a veracidade do que falava, o ex-gerente do tráfico, em fevereiro de 2017, possibilitou à polícia a descoberta de um depósito usado pela facção em Canoas, próximo à BR-386. Foram encontrados 142 quilos de maconha em uma fábrica de fachada.


Os bandidos compravam centenas de quilos de café para disfarçar o cheiro da droga que emanava do local. Ali também ficavam armas e munições. Fuzis eram obtidos a partir de negociações com o Comando Vermelho, facção do Rio de Janeiro. Um ônibus foi apreendido.


O veículo seria usado para transportar a maconha de Foz do Iguaçu, na fronteira com o Paraguai, até Porto Alegre. Em outra comprovação às autoridades, o delator indicou onde existiria um cemitério clandestino.


Um desembargador descreve que o delator "relatou, com riqueza de detalhes, a estrutura, hierarquia, divisão de tarefas da organização criminosa, além de diversas práticas ilícitas realizadas pela facção". Soube-se, por exemplo, que o grupo criminoso lucrava cerca de R$ 200 mil por semana no bairro Mario Quintana. Por mês, o Judiciário estima que a arrecadação no Rio Grande do Sul é de R$ 10 milhões a R$ 15 milhões.


Origens


No fim da década de 1990, o filho de uma dona de casa corria pela zona norte de Porto Alegre dizendo que, quando crescesse, seria policial. Aos 13 anos, já fora da escola (largou na sétima série), pegou pela primeira vez em arma, um revólver 38, mas pela mão de bandidos. Aos 15, ganhou uma pistola e o status de segurança do tráfico no Mario Quintana, bairro que, desde 2011, registrou pelo menos 217 assassinatos (é o quinto mais violento da Capital). Desfilava com colete à prova de balas e posava para fotos com armas automáticas e fuzis.


Aos 18, recebeu um carro do padrasto, que tentava afastá-lo do crime. Uma semana depois, era preso com o veículo. Dentro, havia uma pistola 9 milímetros e drogas.


No fim de 2016, ele virou gerente do crime. Recolhia o dinheiro que chegava do Interior e organizava remessas de maconha. Participou da disputa sangrenta entre grupos criminosos e, segundo seu relato, era um dos poucos que executavam esquartejamentos, selvageria que virou rotina na intimidação dos desafetos. Afirma que recebia ordens diretas de um dos líderes, hoje preso no Estado.


"Desce na Pedrinha (bairro Passo das Pedras) ou na Timbaúva e tenta sequestrar alguém para esquartejar. Se não der, mata ali mesmo." Recados assim eram frequentes na guerra entre os Bala na Cara e a facção rival, os Anti-Bala. Criminosos carregavam o rival até o outro lado da Avenida Protásio Alves e o torturavam até a morte.


Os revides eram habituais. O sangue corria dos dois lados do chamado "corredor da morte".


Certa vez, uma garota de 12 anos foi morta por suspeita de ter repassado informações aos rivais. Estava na casa de um traficante quando teve o telefone confiscado.


Na manhã seguinte, espancaram a guria e a levaram a um morro no bairro Jardim Protásio Alves. De joelhos, foi decapitada.


A cova onde ela foi enterrada ficava em cemitério clandestino no meio da mata. Usar esses pontos para depositar cadáveres é estratégia comum — havia corpos que deveriam ser expostos, como forma de impor terror; outros, não.


A morte da garota atormentou o gerente do tráfico na época. Ele dizia ter sonhos e visões. Acabou se suicidando. Foi sucedido no cargo por seu segurança — o mesmo homem que, tempos depois, abalaria o poder das facções criminosas ao se tornar delator.

GUERRA DAS FACÇÕES EM POA




GAÚCHAZH 15-03-2019

Como se dá a guerra das facções pelo tráfico de drogas em Porto Alegre. Em disputas territoriais, facções rivais eliminam adversários com extrema violência



A facção Bala na Cara — cujo funcionamento foi revelado às autoridades por um delator —, desde a sua criação, no bairro Bom Jesus, na segunda metade da década passada, sempre teve a violência como principal característica. O nome Bala na Cara não é por acaso. Nas origens, seus integrantes costumavam eliminar rivais com o chamado tiro de esculacho, dado no rosto, para que o velório fosse com caixão fechado.


A trajetória do grupo da zona leste de Porto Alegre, que começou com assaltos, antes da migração para o tráfico de drogas, inclui um período em que agiam como braço armado de outra facção, Os Manos, do Vale do Sinos, cometendo homicídios por encomenda e mediante pagamento.


A partir do início dos anos 2010, com planos de crescimento, os líderes decidiram transformar seu negócio em uma facção de fato, com o tráfico como atividade principal. A expansão ocorreu de duas formas principais: a cooptação de donos de bocas de fumo que agem de forma individual e a tomada de pontos de vendas de drogas na base da intimidação ou da violência, com homicídios e até chacinas, inclusive de inocentes.


Esse segundo método acabou provocando reação de parte das facções rivais. Para combater os "toma bocas", como os Bala na Cara ficaram conhecidos pelos inimigos, no início de 2016, foi criada a coalizão de grupos ligados às drogas e, até então, independentes. A união teve como base a quadrilha dos V7 — criada na Vila 27, no bairro Santa Tereza, zona sul da Capital, também na década passada.


À coalizão, foi dado o nome de Anti-Bala. Em sua primeira ação, já ficou explícito que usaria o mesmo expediente dos rivais: a extrema violência. Em janeiro daquele ano, sequestrou o jovem Jeferson Lapuente, 22 anos, que seria integrante dos Bala na Cara, e o decapitou. O corpo, enrolado por um edredom com os dizeres "Bala nos Bala", foi deixado no bairro Mario Quintana. A cabeça, dentro de uma caixa, foi largada no bairro Bom Jesus. O recado foi nítido e a guerra estava decretada.


A partir daquela morte, Porto Alegre e cidades próximas, ao longo de 2016 e 2017, tiveram, pelo menos, 16 casos de decapitações e esquartejamentos. O número de homicídios disparou. De acordo com Atlas da Violência, levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com dados de 2016, Viamão, com 77,1 casos de homicídios para cada 100 mil habitantes, foi a 21ª cidade mais violenta do país. Alvorada, com 71,8, ficou em 30º lugar. Também apareceram no indesejado ranking dos cem municípios mais violentos Porto Alegre (66º, com 58,1) e Sapucaia do Sul (98º, com 50,4).


A Capital teve recorde de assassinatos em 2016. Foram 722 ocorrências e 792 vítimas, de acordo com cifras oficiais. O número pode ter sido maior, pois muitos corpos da guerra do tráfico não são localizados. Diante das elevadas taxas de violência, autoridades decidiram adotar medidas mais severas no combate ao crime.


Em janeiro de 2017, quando foi preso no Paraguai, Jackson Peixoto Rodrigues, o Nego Jackson, 36 anos, apontado como um dos líderes dos Anti-Bala (a partir de um núcleo do bairro Vila Jardim), foi enviado para uma penitenciária federal. O mesmo destino foi dado, dois meses depois, a José Dalvani Nunes Rodrigues, o Minhoca, 36 anos, apontado como líder dos Bala na Cara na Vila Safira, no bairro Mario Quintana.


As duas transferências serviram como balão de ensaio para a Operação Pulso Firme que, em julho de 2017, determinou a remoção de outros 27 presos que, de acordo com investigações, ocupam posições chave em facções do Estado. Os casos de homicídio caíram na Capital em 2017: foram registradas 585 ocorrências com 666 vítimas. A queda acentuou-se em 2018 para 458 casos e 539 mortes.


A tendência de redução nos assassinatos está sendo mantida em 2019. Principalmente naqueles cometidos com crueldade. Mas as facções não foram desarticuladas. Em busca de novos mercados, expandiram-se para o Interior. Além disso, passaram a disputar o mercado excedente não atendido pela liberação da maconha no Uruguai. Com isso, aumentaram os homicídios no país vizinho.


Mesmo que os órgãos de segurança tenham intensificado o combate ao crime organizado, atacando principalmente a lavagem de dinheiro, os grupos mantêm o poderio bélico e seguem faturando com o tráfico de drogas e crimes relacionados.


É um barril de pólvora que pode ser detonado a qualquer momento.