domingo, 7 de janeiro de 2018

NÃO É POSSÍVEL ACABAR COM FACÇÕES CRIMINOSAS


“Não é possível acabar com facções criminosas”, diz líder de grupo de combate ao crime. O promotor Marcelo Dornelles, presidente do Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas, pretende monitorar a lavagem de dinheiro a partir deste ano

ALINE RIBEIRO
EPOCA 24/01/2017


 
Ônibus queimado pelo PCC em São Paulo, em 2006 (Foto: Valéria Gonçalves/Estadão Conteúdo)

Desde setembro do ano passado, o procurador-geral do Rio Grande do Sul, Marcelo Dornelles, comanda o Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas (GNCOC). Criado em 2002 depois da morte de um promotor mineiro que investigava uma máfia de adulteração de combustível, o grupo tem cerca de 120 promotores de todo o Brasil. Seus integrantes se reúnem de duas a três vezes ao ano para traçar estratégias nacionais de enfrentamento das facções.

Sua mais recente ação visa pressionar o governo federal a financiar a instalação de bloqueadores de celulares em presídios. A medida, segundo Dornelles, seria “o fato mais significativo para conter a crise atual”. Só 2% das penitenciárias brasileiras – um total de 24 unidades em dois estados – contam com o equipamento hoje. No começo de janeiro, o presidente Michel Temer (PMDB) prometeu repassar aos estados R$ 150 milhões para a compra de novos equipamentos. Embora importante para dificultar a comunicação dos presos com o mundo externo, a medida é paliativa. Mesmo em penitenciárias de segurança máxima que contam com o aparelho, como a P2, em Presidente Venceslau, os detentos encontram brechas para mandar recados. Uma das estratégias mais usadas é enviar as informações armazenadas em pequenos chips escondidos no corpo dos visitantes.

Dornelles diz acreditar que, mesmo no longo prazo, não é possível acabar com facções criminosas no Brasil. Apenas enfraquecê-las. Para isso, o grupo passará a dar ênfase, a partir deste ano, a investigações para monitorar a lavagem de dinheiro realizada pelos presos. “Faltava o despertar para isso. A polícia, o Ministério Público e o próprio Poder Judiciário não tinham se dado conta do quanto esses criminosos continuam, mesmo depois de condenados, movimentando recursos”, diz.

ÉPOCA – Por que é tão difícil combater facções criminosas no Brasil?
Marcelo Lemos Dornelles – Criou-se um acordo tácito entre os governos estaduais e as facções. Os governantes aceitaram que elas dominassem as cadeias. Cada novo preso, mesmo que não queira, acaba se identificando com uma facção. E as organizações se fortalecem. Em troca, o governo garante que não haja mais motins, que não matem mais presos dentro das cadeias. O que pregamos como solução? É preciso criar presídios novos, mas não se pode colocar nenhum preso antigo neles. Precisamos criar condições para que presos novos não se vinculem a facções. No médio prazo, elas vão se enfraquer. O que mais é preciso fazer? Colocar as lideranças em presídios federais, para cortar a comunicação com o mundo externo. E atacar as finanças dessas organizações.

ÉPOCA – Seriam necessários muitos novos presídios para abrigar a quantidade de presos que ingressam no sistema todo ano...
Dornelles – Não tanto. A maioria dos que ingressam já é condenada. O contingente dos presos que ingressam pela primeira vez não é tão grande. Então é possível começar a separar.

ÉPOCA – Mesmo como réus primários, esses presos podem integrar facções desde antes de entrarem na cadeia. De que adiantaria isolá-los dos demais?
Dornelles – É... Aí não tem jeito. Precisa, de alguma forma, quebrar o poder. O que já é da facção vai ser complicado.

ÉPOCA – O senhor mencionou três soluções para o combate ao crime organizado: isolar os réus primários, transferir lideranças para presídios federais e atacar o dinheiro. O que o grupo de combate às organizações criminosas está fazendo hoje para investigar a lavagem de dinheiro comandada de dentro das cadeias?
Dornelles – É isso o que queremos trabalhar a partir de agora de uma forma mais direcionada. Qual é a situação normal hoje? Acompanhar as lavagens dos crimes que já estão acontecendo. Agora, acompanhar a lavagem de já condenados, que já estão presos, não é rotina. Queremos focar nisso.

ÉPOCA – Vocês não investigam lavagem por parte de presos então?
Dornelles – Hoje isso não é rotina em nenhum lugar. Em geral, a lavagem se dá durante a investigação. Como na Lava Jato... Pega a lavagem enquanto o crime está acontecendo. Mas depois que os criminosos são definitivamente condenados, especialmente nesses crimes como tráfico e roubo, não há rotina de acompanhamento de lavagem. A partir de março, na nossa próxima reunião, vou colocar isso como meta.

ÉPOCA – Por que ainda não é feito?
Dornelles – Faltava o despertar para isso. A polícia, o Ministério Público e o próprio Poder Judiciário não tinham despertado para o quanto esses criminosos continuam, mesmo depois de condenados, movimentando recursos. Veja bem. Nós, enquanto promotores, imaginamos que, uma vez condenada, a pessoa está segregada e sem praticar novos crimes. Mas, na verdade, continua praticando.

ÉPOCA – Qual é a dificuldade de investigar a lavagem de dinheiro de um condenado?
Dornelles – Imagina um líder de quadrilha com 120 anos de condenação. Esses fatos que o levaram a ser condenados são antigos. Os processos são arquivados e resta só a ação penal, que é o cumprimento da pena. Não há um instrumento processual natural de encadeamento de investigação. Para você pegar um desses presos com lavagem, você tem de começar do zero. É um fato novo.

ÉPOCA – O padrão de vida dos familiares dos chefes das facções já não é um forte indício de lavagem de dinheiro do preso? Em Presidente Prudente, por exemplo, todo mundo sabe que a mulher do Andinho, um dos líderes, mora num condomínio de luxo. Os filhos frequentam colégios caros.
Dornelles – Exatamente. Se ela não trabalha, não tem herança, não tem pensão, não tem pagamento, de onde vem a renda dela? Esse é um exemplo clássico. Só que aí você não vai pegar o crime desse condenado há dez anos. Você tem de pegar o fato novo. A mulher dele vive em condições que ela não tem porque ele está preso. E a partir daí fazer investigações e ver de onde vem o dinheiro.

ÉPOCA – Já ouvi relatos, reservadamente, de integrantes do poder Judiciário que não investigam os familiares dos chefes de facção por medo de retaliação. O senhor é favorável à federalização dessas investigações?
Dornelles – Sou contra qualquer federalização. Isso é coisa de filme americano. Acho que não passa de uma ideia mágica. Agora, que é complicado pela segurança dos membros, é. Como a gente trabalha isso? De uma forma impessoal. O Ministério Público, o Gaeco, e não o promotor A, B, C ou D. É um modo de despersonalizar. Além disso, ninguém assina sozinho. Coloco seis, sete promotores para assinar juntos quando envolve casos mais graves. Correr riscos faz parte da nossa atividade.

ÉPOCA – Algumas cidades têm só um promotor.... Como despersonalizar?
Dornelles – Um é mesmo muito pouco. Às vezes, o que fazemos é trocar de região. Vem um colega do mesmo estado, mas de outra região. Vem, faz o trabalho e sai. Você tem de buscar a impessoalidade. Quem faz o trabalho é a instituição, não o promotor.

ÉPOCA – Por que não federalizar?
Dornelles – O que eles vão fazer que nós não podemos? Sem contar que, para federalizar, é preciso mudar a Constituição.

ÉPOCA – O senhor acha que é possível acabar com facções criminosas, como ocorreu em outros países?
Dornelles – Acabar é difícil. Mas dá para enfraquecer. Nós temos de enfraquecê-las para que percam o poder que têm hoje.

ÉPOCA – Por que não é possível acabar?
Dornelles – Porque as facções já estão enraizadas. Dominaram a esmagadora maioria do contingente de presos. À medida que se enfraquece, elas vão se dividir em grupos menores. Mas sempre vai ter alguma espécie de organização. O que não pode é deixar que tenham esse poder de controlar a cadeia e o crime.

O CRIME ESTA EM GUERRA




O crime está em guerra: as maiores facções brasileiras romperam . As rebeliões em presídios são um aviso. A selvageria está à solta

ALINE RIBEIRO, COM HUDSON CORRÊA E HELENA FONSECA
EPOCA 25/10/2016


 
DEPOIS DA BARBÁRIE
Policiais revistam detentos na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista, Roraima. No dia 16, dez presos foram assassinados por membros da facção rival (Foto: Reuters)

Há um mês, o detento Waldiney de Alencar Sousa procurou a direção da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista, Roraima, com um pedido de ajuda. Estava jurado de morte por outros presos. Queria, portanto, ser transferido para longe dali. Sua solicitação foi acatada, mas esbarrou nos burocráticos sistemas prisional e judiciário. Enquanto era feita uma varredura pelas unidades prisionais em busca de uma vaga, seus algozes agiram. Na tarde do domingo, dia 16, dia de visita, Waldiney se despediu da mulher no portão. Voltava para o interior do presídio quando foi atacado pelos inimigos. Chegaram até ali, a ala dos adversários, depois de quebrar cadeados e escavar buracos nos muros que dividem o espaço entre as organizações criminosas dentro da cadeia. A cabeça de Waldiney foi quebrada com pedras. Seu crânio terminou esfacelado.

Como quase sempre acontece, os presos foram mais rápidos que o Estado, e Waldiney – ou Vida Loka, no batismo do crime – morreu logo depois de completar 33 anos. Na mesma cadeia, outros nove detentos foram assassinados num espetáculo de selvageria e demonstração de poder. Alguns corpos foram decapitados; outros, queimados numa fogueira. Horas mais tarde, a 1.700 quilômetros de distância, algo muito parecido assombrou Porto Velho, em Rondônia. Oito presos morreram asfixiados pela fumaça na Penitenciária Ênio dos Santos Pinheiro. Não se tratava de uma coincidência infeliz. Era um surto coordenado.

A ordem para a matança foi dada em setembro deste ano, dias antes de Waldiney revelar as ameaças. Partiu da penitenciária de segurança máxima de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo, onde está detida a cúpula do Primeiro Comando da Capital (PCC), a maior organização criminosa do Brasil, que domina os presídios paulistas. Numa carta escrita à mão, assinada pela “sintonia final”, os chefes do bando paulista mandaram um “salve” nacional declarando guerra à facção carioca Comando Vermelho (CV), sua antiga aliada, parceira comercial e hoje maior concorrente. A mensagem, possivelmente transposta para fora da prisão por advogados ou familiares, foi digitalizada e distribuída via WhatsApp aos presídios que estão “no ar”, na gíria da bandidagem – aqueles que não contam com bloqueadores de sinal para telefones celulares. Alastrou-se rapidamente até a Região Norte do Brasil.


ÉPOCA teve acesso ao conteúdo desse informe. Nele, a organização explica os motivos da briga. Os tropeços no português apenas ressaltam a selvageria que está por vir. “Este Salve tem como finalidade esclarecer o que vem acontecendo nas prisões espalhadas pelo país. Há muito tempo Estamos procurando a liderança do Cv para mantermos a harmonia entre nossos integrantes e corrigir de ambos os lados, situações que fogem do bom convívio e até da ética do crime. (...) não tivemos atenção e tão pouco recebemos respeito. A partir do momento que o CV iniciou uma expansão pelos Estados, se aliando aos nossos inimigos (FDN, pgc, sindicato, Bonde dos 40 ) e respondendo Pelas atitudes desses, já se tornou um desrespeito a nós. Nosso lema é o crime fortalecer o crime, nunca buscamos esses conflitos, porém não vamos ficar quietos se formos atacados por quem quer que seja (...) Deixamos claro que estamos prontos para a guerra uma guerra esta sendo criada pelo Cv. Estamos prontos para reagir de imediato a qualquer ataque que viemos sofrer, não concordamos com essa guerra que beneficiará somente a polícia, mas não iremos nos omitir.”


A rixa local que culminou na execução brutal de Waldiney é um reflexo da guerra entre as duas maiores organizações criminosas do país recém-declarada pelos informes. Trata-se de uma disputa de mercado. De uma briga por um naco dos bilhões movimentados ilegalmente, todo ano, pelo tráfico de drogas no Brasil. Assim como empresas, facções criminosas têm uma hierarquia rígida e responsabilidades atribuídas a cada posto. Assim como no mundo corporativo, seus integrantes competem por cargos e salários melhores. Mudar de companhia, ou de organização criminosa, é uma das mais eficazes maneiras de subir na carreira. Waldiney foi um dos três responsáveis por levar o PCC a Roraima. Batizou-se como integrante da facção paulista com direito a padrinho, número de matrícula e apelido. Cumpria pena por roubo, homicídio e tráfico. Mais tarde, ao perceber que estava estagnado, decidiu sair em busca de novos desafios profissionais. “Como não alcançou um posto de maior representatividade no PCC, ele se rebelou e começou a desenvolver uma célula do Comando Vermelho aqui em Roraima”, afirma o promotor Marco Antônio Bordin, coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) de Roraima. A oportunidade que vislumbrou estava na organização carioca.

No empreendimento criminoso, trabalhar significa roubar, matar; trocar de emprego pode significar a morte. Waldiney fez isso ciente do risco que corria – o nono artigo do estatuto do PCC diz que “aquele que pedir para sair poderá ser visto como traidor, e o preço da traição é a morte”. Com a troca de facção, por medida de segurança Waldiney foi transferido para um presídio em Mato Grosso do Sul. Mas voltou ao Norte a pedido de sua defesa e acabou assassinado na rebelião. Num dos “salves” enviados pela organização carioca aos presídios na última semana, Waldiney foi lembrado como “presidente” do estado. O reconhecimento que tanto almejava veio numa homenagem póstuma, numa mensagem distribuída por seus colegas de crime. “Ouve uma ação ousada e fatal do PCC contra nossa família CVRL no estado de Roraima, onde nessa ação foram assassinados vários irmãos nossos inclusive o próprio presidente do estado, nosso irmão Vida Loka e outros irmãos nosso (sic)”.

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O Comando Vermelho é, digamos, uma organização mais tradicional. Foi criado em 1979, no presídio da Ilha Grande, litoral do Rio de Janeiro, da união entre criminosos comuns e presos políticos oriundos de organizações que lutaram contra a ditadura militar. Controla o maior contingente de criminosos no Rio de Janeiro, com braços nas regiões Norte e Nordeste e bases em Paraguai, Colômbia, Bolívia, Peru e Venezuela. A facção paulista está presente em todos os estados brasileiros e faz negócios – ilegais, claro – em Bolívia, Paraguai, Colômbia, Peru, Argentina, Chile, Venezuela e Guiana Francesa. Se fosse uma empresa, o PCC teria a envergadura de uma multinacional – com a diferença que seu negócio envolve drogas, armas e, por ser ilegal, implica roubo, assassinatos e outras violências. Há funções específicas para cada cargo, metas mensais e cobrança por eficiência. Até mesmo o vocabulário adotado se assemelha ao universo corporativo. Biqueira é “loja”. O dinheiro do tráfico, “capital de giro”. Faltar com clareza numa explicação à chefia é não ter “transparência”.

Sua organização financeira é considerada sofisticada – talvez não tanto quanto a exposta por algumas empresas envolvidas na Operação Lava Jato. O dinheiro arrecadado com a venda da droga é depositado em pelo menos cinco diferentes caixas, cada um a serviço de uma finalidade. Um deles, por exemplo, garante recursos para que cada preso receba, todos os dias, 3 gramas de maconha e um maço de cigarros na cadeia. Outro é usado na expansão territorial, para subsidiar viagens ao exterior a fim de “batizar” parceiros de outras facções. Um terceiro, para a aquisição de armas. Estima-se que seu faturamento passou de R$ 10 milhões para entre R$ 100 milhões e R$ 200 milhões em uma década. A organização controla hoje mais da metade da venda de entorpecentes do país. Nesse concorrido mercado ilegal, o PCC é imenso, mas não é único. Disputa espaço com o Comando Vermelho e outra facção, a Amigos dos Amigos, conhecida pela sigla ADA. Além de outras menores, espalhadas pelo Brasil.

PCC e CV estiveram juntos numa operação complexa, vantajosa e barulhenta em 15 de junho deste ano na cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, que faz fronteira com a brasileira Ponta Porã, em Mato Grosso do Sul. O vídeo de uma câmera de segurança marcava 18h44 quando um Toyota Hilux prata parou no cruzamento. O veículo esperou ser alcançado, propositalmente, por um Hummer preto escoltado por três carros. De repente, a porta traseira do Hilux se abriu e disparou uma rajada de balas. A rua se iluminou com os tiros. O alvo, dentro do Hummer, era o brasileiro de origem libanesa Jorge Rafaat Toumani, de 56 anos. Seus capangas, armados com pistolas automáticas de fuzis, não tiveram nenhuma chance diante dos mais de 100 tiros disparados contra ele. Até uma metralhadora antiaérea foi usada para perfurar a grossa blindagem do Hummer, em um procedimento digno de ataques perpetrados em zonas de conflito armado como Iraque e Afeganistão.



Conhecido como Rei da Fronteira, Rafaat era o último obstáculo para que a organização paulista dominasse o caminho das armas e drogas vindas do Paraguai. Procurado no Brasil, Rafaat cometia seus crimes com certa paz no Paraguai. Operava independente das duas organizações e tinha um mercado cativo. Sem chance de cooptá-lo, as facções recorreram ao extermínio. Apesar de ter sido um sucesso do ponto de vista dos criminosos, a operação pode ter contribuído para estremecer a relação entre as organizações paulista e carioca. “Juntas, elas estruturaram o Narcossul, o primeiro cartel internacional de drogas com sede no Brasil”, afirma o procurador de Justiça de São Paulo Márcio Sérgio Christino. “Mas agora o Comando Vermelho percebeu que o PCC tomou aquele trecho e que não terá mais o acesso que imaginava. Então se estranharam.”


A relação harmônica começou a ser minada há três anos por conflitos pontuais, envolvendo facções menores que atuam em presídios de estados fora do eixo Rio-São Paulo. A organização paulista tem uma política agressiva de expansão de territórios, não raro contida pelas idiossincrasias de cada lugar. Esses pequenos grupos locais, com regras e códigos de condutas próprios, muitas vezes não aceitam a imposição das normas rígidas dos forasteiros. “Existe um receio de que o PCC se torne hegemônico no tráfico”, afirma o promotor Lincoln Gakiya, do Gaeco de Presidente Prudente. Assim começam os conflitos. O Comando Vermelho se aproveitou do mal-estar entre essas pequenas facções e os paulistas para formar alianças regionais com Família do Norte (FDN), do Amazonas; Primeiro Grupo Catarinense (PGC), de Santa Catarina; Sindicato do Crime (SDC), do Rio Grande do Norte; Bonde dos 40, do Maranhão; e Okaida, da Paraíba. Em troca, esses bandos ganham abrangência nacional e se fortalecem na oposição ao PCC.

Desde os primeiros sinais de racha, os presídios entraram em ebulição. No Rio de Janeiro, quase 100 presos da facção oriunda de São Paulo foram realocados antes da matança no Norte, no final de semana. Em Porto Velho, 96 detentos foram transferidos para diferentes unidades de Rondônia depois dos assassinatos. Um início de motim em Pacatuba, no Ceará, terminou com grades quebradas e detentos soltos no pátio. Em Rio Branco, no Acre, 25 membros de uma organização invadiram a cadeia e deixaram quatro feridos. Um dos criminosos acabou preso. Em Manaus, no Amazonas, os bandidos foram mais longe: falaram em “espalhar o terror” dentro e fora das penitenciárias e ameaçaram de morte promotores, juízes e o secretário de Segurança. Reivindicam que os chefes da facção local, a FDN, sejam mandados de volta a Manaus, para presídios mais seguros.

Os integrantes das mais diversas quadrilhas mandaram recados também aos oponentes – pelo WhatsApp, direto dos presídios. Numa patética tentativa de demonstrar força, os detentos usaram a internet para exibir seu potencial bélico. Num dos vídeos, membros da facção paulista desafiam os rivais com fuzis AK-47 e AR-15. Num outro áudio, um grupo inimigo convoca todas as facções menores a se unirem para exterminar os paulistas: “Vamo ajuntar ai essas facção que são fechada com nois e vamo por no vermeio essa porra. Esses cara vão sair da frente”. Diante de uma das mais graves crises de segurança pública nacional dos últimos tempos, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, restringiu-se a dizer que não faz comentários “sobre grupos criminosos”, mas admitiu que a situação nas cadeias é “gravíssima”. “Não é possível combater de forma séria e dura o crime organizado se não começarmos pelos presídios”, disse durante a apresentação do novo secretário da Pasta para o Rio de Janeiro, Antônio Roberto Sá, na segunda-feira, dia 17. Um dia depois, Moraes determinou o envio de membros do Departamento Penitenciário Nacional para Boa Vista, em Roraima, para investigar os crimes.



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GUERRA ENTRE FACÇÕES DENTRO DOS PRESIDIOS


A rebelião em Goiás é mais um episódio da guerra entre facções nos presídios. O motim que deixou nove mortos, 14 feridos e dezenas de foragidos é a mais recente batalha de uma disputa entre as grandes facções criminosas do país

MATEUS COUTINHO| DE APARECIDA DE GOIÂNIA
EPOCA 05/01/2018

 
A AGONIA DA ESPERA
Familiares se desesperaram em busca de notícias. Eles não sabiam se seu parente preso estava vivo, ferido ou foragido (Foto: Sérgio Lima/ÉPOCA)

A tarde começou agitada no primeiro dia do ano na Colônia Agroindustrial de Aparecida de Goiânia, em Goiás, onde ficam os presos que cumprem pena no regime semiaberto no estado. Situada no centro do complexo, a ala C, dominada pela facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC), começava a se movimentar. Nela amontoavam-se 388 detentos em 12 celas. É a maior ala do presídio. A insatisfação dos detentos após quatro dias sem água serviu de estopim para que as duas maiores organizações do país, PCC e a carioca Comando Vermelho (CV), protagonizassem mais um capítulo da sangrenta briga por território que se estende há mais de ano na esteira da omissão dos governos.


Por volta das 14h30, sob o efeito de drogas e portando facas e armas de fogo, os detentos da ala, dominada pelo PCC, se reuniram e rumaram para a ala B, mais identificada com o Comando Vermelho, onde ficavam 180 detentos. O atalho para chegar à ala vizinha, separada por um muro e um portão de grade, foi um buraco aberto na parede da cela de um dos detentos, cavado há dias. A cena foi seguida por tiros, ataques e agressões que tinham alvos definidos: os membros do Comando Vermelho nas alas A e B.

As cenas de brutalidade que se seguiram foram gravadas por celulares dos próprios detentos em vídeos que remontam às rebeliões ocorridas antes em Roraima, Amazonas e Rio Grande do Norte. Detentos protagonizavam ataques brutais de facas e até machado, queimavam colchões e depredavam geral, tudo com as saudações ao PCC. Em outros, celebravam decapitações, em meio a vísceras esparramadas pelo local e até dependuradas na cerca do presídio.

Por volta das 16 horas o Grupo de Operações Penitenciárias Especiais (Gope), uma espécie de tropa de choque da segurança penitenciária no estado, com apoio do Batalhão de Choque da Polícia Militar, conseguiu retomar o presídio, e os bombeiros controlaram as chamas. O estrago feito: dois decapitados, sete mortos no incêndio (todos do Comando Vermelho) e 14 feridos, além de três armas de fogo apreendidas (um revólver 38 e duas pistolas 9 mm), 15 facas e 200 gramas de cocaína.




A tragédia na Colônia Agrícola de Aparecida de Goiânia, com base em relatos de agentes, detentos, familiares e investigadores, era mais que esperada e consequência de uma briga por território entre os dois grupos criminosos que controlam o tráfico. Desde outubro de 2016, o CV se uniu a organizações criminosas locais – como Família do Norte, no Amazonas, e Sindicato do Crime, no Rio Grande do Norte (ver o mapa) – para enfrentar o PCC. A reportagem teve acesso a um mapeamento dos órgãos estaduais que mostra que, de janeiro a dezembro de 2017, o número de detentos ligados ao PCC no estado disparou de 40 para 700.

A facção está presente em cerca de 80% dos 137 presídios de Goiás e chega até a fazer conferências semanais por telefone com todos eles. O estado é estratégico para o tráfico por uma questão logística: além de estar literalmente no centro do país, facilitando a distribuição para qualquer região, fica próximo de Brasília, um importante mercado para o tráfico devido à alta renda de seus moradores, além de ser utilizado também na rota internacional, distribuindo drogas que vêm de países vizinhos como o Paraguai. A articulação da quadrilha contrasta com a desorganização e má gestão do sistema penal abarrotado em Goiás, não muito diferente do resto do país.

Na hora do massacre em Aparecida de Goiânia, havia apenas cinco agentes penitenciários no local para cuidar dos 721 detentos que estavam lá – 388 da ala C, dominada pelo PCC. Diante da proporção, muito abaixo da recomendação internacional de um agente para cada cinco detentos, os próprios funcionários sugeriram aos presos que não estavam envolvidos no conflito que deixassem a prisão, rodeada por um matagal e próxima a uma região industrial do município.

Segundo relatório da Secretaria de Segurança Pública de Goiás, 207 detentos seguiram a recomendação dos agentes e fugiram para o entorno do local, mas retornaram tão logo a tropa de choque da Polícia Militar retomou o controle, por volta das 16 horas do dia da rebelião. Outros 106 presos, porém, aproveitaram a oportunidade para fugir. Nesse grupo estava o filho da aposentada Sônia, de 55 anos (ela não quis se identificar com o sobrenome), que foi recapturado no mesmo dia, assim como outros 28 detentos. Na última vez que Sônia visitara o filho, em 31 de dezembro, o rapaz adiantou para a mãe o que estava por vir: “Mãe, vai ter invasão aqui, a turma da ala C vai invadir nós (sic)”, relatou. Sônia era uma das dezenas de familiares que passaram os primeiros dias do ano sem saber se seu parente preso estava vivo, ferido ou foragido.

MARCAS
Ricardo Cristiano Lima exibe os ferimentos que sofreu. Ele retornou à prisão depois de se esconder na mata (Foto: Sérgio Lima/ÉPOCA)

Dois dias após o motim que chocou o país, uma mulher loira era uma das cinco pessoas atrás de informações sobre detentos no balcão de entrada da Colônia Agroindustrial. Abalada após ouvir dos agentes do presídio que seu marido não estava lá, ela começou a caminhar de um lado para o outro. Foi para um canto, em uma parede na lateral da recepção, para falar ao telefone. “Meu marido é esperto, ele não ia se machucar”, afirmava aos prantos. Abordada pela reportagem, que presenciou a cena, ela não quis dar entrevista.


Ricardo Cristiano Lima, de 29 anos, foi um dos detentos que retornaram espontaneamente à prisão. Por volta das 16 horas da quarta-feira, o detento chegou à Colônia Agrícola para se entregar. Ferimentos em seu corpo, provocados por pedradas, exibiam nele a marca da ação do PCC. Ricardo ficava na ala A e fugiu no dia do motim. Correu pelo vasto matagal que circunda a penitenciária até chegar a uma favela próxima. “Me escondi em uma casa e fiquei esperando”, contou. Retornou à prisão com sua advogada e só se apresentou após ter a garantia de que seria transferido para a Penitenciária Coronel Odenir Guimarães (POG ), para onde foram mandados os presos sem relação com a briga.

A origem da rebelião remonta a fevereiro do ano passado, quando um dos maiores traficantes do estado morreu em uma briga de gangues na POG. Thiago César de Souza, então com 32 anos, era ligado ao PCC. Sua morte desencadeou uma reação do grupo criminoso, que passou a se expandir e ocupar o espaço que era do Comando Vermelho, acirrando o clima nos presídios. Segundo investigadores, as práticas adotadas pelas lideranças do grupo nos presídios têm sido a extorsão e a ameaça, com a promessa de garantir proteção ao preso e a seus familiares, moeda de troca irrecusável para os detentos. Ainda assim, o Comando Vermelho também tem mostrado sua força.



Cinco dias antes do episódio em Aparecida, membros do CV decapitaram um integrante do PCC no presídio do município de Jaraguá, no interior do estado. O caso ainda está sob investigação da Polícia Civil. O Comando Vermelho tem mantido força nas cidades localizadas nas fronteiras do entorno do estado, enquanto o PCC se concentra na região central, mais próxima do Distrito Federal.

Somente na noite de quarta-feira o governo do estado admitiu que a rebelião em Aparecida foi devido ao confronto das duas facções. Ainda assim, até a noite de quinta-feira, as autoridades não puniram e nem retiraram da Colônia os detentos da ala C. Foram transferidos apenas os das alas A e B. Para tentar apaziguar os ânimos, a Justiça ainda autorizou temporariamente os detentos que trabalham durante o dia a não retornar à noite para dormir – mesmo sem tornozeleiras eletrônicas.


A situação em todo o estado, porém, continua prestes a explodir. Na noite da quinta-feira, dia 4, houve uma nova tentativa de rebelião dos detentos da ala C. Na madrugada da sexta-feira, dia 5, foi a vez de a POG registrar um princípio de motim. A maior preocupação das autoridades agora são os presídios do interior, que não contam com a estrutura do choque e das tropas especiais da PM para agir rapidamente e controlar motins. O secretário de Segurança Pública de Goiás, Ricardo Balestreri, afirmou na sexta-feira que mapeou articulações de aproximadamente 20 rebeliões no estado. Nenhuma se concretizou. O diretor-geral de administração penitenciária, Edson Costa, afirmou que vai transferir presos para tentar desarticular as rebeliões. Uma inspeção dias antes, por determinação da presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, havia constatado que os agentes não controlam a situação do presídio de Aparecida.

A disputa sangrenta em Goiás é apenas mais um capítulo no previsível avanço do crime organizado nas cadeias e fora delas. As duas grandes facções passam por um processo de consolidação do poder no Brasil todo, à sombra da omissão das autoridades que não assumem um plano estratégico de âmbito nacional. Enquanto cada estado tenta conter a ameaça sozinho, o Brasil se vê cada vez mais refém de grupos bem estruturados e sem escrúpulos.